Reflexões de um sábado sobre comunicação
Recentemente, o mundo assistiu a uma nova vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas. Desta vez, com mais autoridade: venceu no voto popular, venceu no colégio eleitoral por larga vantagem (embora as pesquisas apontassem um cenário dividido), e liderou os republicanos à formação de incontestes maiorias no Senado e na Câmara.
Não quero falar especificamente sobre a vitória de Trump, até porque, ainda que não seja estadunidense, não resida em nenhuma de suas cidades e tampouco tenha pretensões imediatas de ir àquele país, o simbolismo político desse resultado vem me tirando a paz. Então fugirei, por ora, desse tema.
Quero usar as eleições americanas somente como ponto de partida para um elemento específico: a contestação do papel político da mídia tradicional. Trump, ao longo da última década, teve uma ascensão meteórica no campo da política institucional, e trouxe consigo discursos problemáticos de toda ordem. Mas um dos pontos fundamentais da narrativa trumpista (e de outros players do mesmo campo) é a contestação da mídia tradicional.
Curiosamente, os ataques às corporações midiáticas tradicionais era, costumeiramente, uma tarefa dos setores à esquerda do espectro político. Lembro de, certa feita, ver na internet um vídeo curto em que um reporter da Rede Globo tentava entrevistar um manifestante em algum movimento de rua (não lembro se em São Paulo ou no Rio de Janeiro) e obteve como resposta a marcante frase "não falo com mídia corporativista burguesa". O jovem e idealista Eric teve um breve momento catártico com uma resposta tão afiada contra um veículo de comunicação que tão mal fez aos setores progressistas do país por décadas a fio.
O ódio da esquerda contra a Rede Globo era justificado na raiz devido ao fato de a emissora ter sido um dos sustentáculos da ditadura militar brasileira. Adiante, nas primeiras eleições presidenciais com voto popular após a abertura democrática, a emissora manipulou o quanto pôde o debate presidencial entre Collor (que viria a ser presidente) e Lula.
Durante os governos petistas, Globo e Veja tabelavam em ácidas críticas às políticas governistas. Não vou nem adentrar episódios como o mensalão e a lava-jato, porque estão - ambos - muito frescos na memória de todos.
Há que se considerar um detalhe: a mídia brasileira não toma lado expressamente. Todos sabemos, ao ler qualquer editorial, ao folhear um jornal, ou ao assistir a telejornais, qual campo político encontra guarida na cobertura midiática de cada veículo de comunicação. Faz parte da hipocrisia litúrgica da política brasileira. A gente faz e todo mundo sabe, mas deixa em off.
Nos Estados Unidos, entretanto, me parece haver mais transparência nesse quesito. Trata-se de uma tradição da mídia impressa americana o apoio público a concorrentes nos pleitos presidenciais. Segundo o UOL, neste ano de 2024, apoiaram Kamala Harris o The New York Times, San Francisco Chronicle, Houston Chronicle, The Boston Globe, The Seattle Times, Las Vegas Sun, The Philadelphia Inquirer, entre outros. O apoio de redes telesivivas com a ABC também se viu, basta assistir a qualquer monologo de abertura dos programas do Jimmy Kimmel nos últimos meses.
Já do lado de Donald Trump (segundo o UOL), lançaram editoriais: The Las Vegas Review Journal, New York Post, e The Washington Times. Importantes veículos de comunicação americanos que optaram por não tomar partido abertamente na disputa forma severamente criticados. O The Washington Post perdeu 250 mil assinaturas. Já o L.A Times, que também optou pela neutralidade editorial, perdeu cerca de 2% das assinaturas.
Correndo por fora dos veículos de mídia tradicionais, Donald Trump angariou apoio do bilionário Elon Musk (dono do Twitter - e sim, eu jamais chamarei pelo novo nome dado à plataforma), que chegou inclusive a oferecer milhões de dólares a eleitores durante a campanha. Além disto, Trump recebeu apoio dos hosts dos dois Podcasts mais ouvidos pelos americanos usuários do Spotify: Joe Rogan e Tucker Carlson.
Carlson foi, por anos, um dos principais âncoras da Fox News, rede de comunicação abertamente conservadora e um dos sustentáculos midiáticos do trumpismo no início de sua ascensão na política institucional. Já Joe Rogan - comediante e lutador - entrevistou tanto o vice de Trump - J. D. Vance - quanto o próprio Donald. Ao abrir a aba de comentários, é quase uníssono o apoio dos espectadores a Trump, muitas vezes acompanhados de ataques à mídia corporativa tradicional.
Pois bem. Dada toda essa volta, faço o pouso em solo tucuju. No Amapá, há muito se recorre ao jargão popular pra criticar veículos midiáticos que recebem recursos de grupos políticos para apoios velados: a chamada mídia jabazeira.
A epítome do Jabá midiático tucuju me parece ser o jornalista Carlos Lobatto. Como trabalho em regime de home office desde a pandemia, perdi o hábito de ouvir o programa de Lobatto - Tribuna da Cidade - de modo que não sei se ele ainda é o âncora. Mas lembro como se fosse ontem: 7:10 da manhã, rádio sintonizado no Tribuna da Cidade, bancada composta por Carlos Lobatto, Silvio Sousa, Carlos Sérgio Monteiro e, eventualmente, o advogado Waldenes Barbosa. Era um show de puxação de saco de políticos locais que engordavam o bolso da rapaziada.
Não lembro de nenhum veículo de comunicação que tenha passado incólume às acusações de receber o famigerado Jabá. O jornal A Gazeta era uma coisa nojenta de se ler. Quando Roberto Góes era prefeito, saiu uma capa que dizia algo no estilo "Macapá é eleita uma das melhores 90 capitais brasileiras...", sendo que a o país não tem nem um terço deste número de capitais. E a cidade, naquele momento, encontrava-se inteiramente jogada às traças. Foram tenebrosos os anos de pax política do grupo que veio a ser denominado "Harmonia", capitaneado por Waldez Góes (que considero um baita político, por contraditório que possa parecer). O ponto mais baixo da breve história de Macapá foi, sem dúvida alguma, os que tivemos Waldez na cadeira do setentrião e Roberto Góes na prefeitura da capital morena da Amazônia.
Mas aí, entra um novo componente na brincadeira: as redes sociais, e começa a tocar aquela baladinha romântica do Paulo Ricardo que diz assim "de repente as coisas mudam de lugar... e quem perdeu pode ganhar!". As redes sociais representaram uma verdadeira revolução em matéria de comunicação. Aliás, representaram e seguem representando. A cada dia é uma marmota nova.
E aqui faço uma autocrítica, que entendo servir também para os confrades que cerram fileiras comigo no campo progressista: a gente nunca soube levar a sério esse movimento. E talvez a reflexão vá ainda além: a gente talvez ainda se sinta uma elite intelectual iluminada com poderes de tutela sobre a população que tanto juramos defender. Mas basta uma vírgula de dissonância que vêm os adjetivos compostos: pobre de direita, capitão do mato, e por aí a coisa avança.
Penso que por tanto tempo fomos acostumados a falar, que perdemos a sensibilidade e a disponibilidade para ouvir. E as redes sociais trouxeram isto: voz! Queiramos ou não, as redes sociais representam um certo empoderamento daqueles que antes não eram tão ouvidos assim. E aí nos agarramos a frases que já se tornaram clichês, como a de Umberto Eco, quando disse que as redes sociais deram voz a uma legião de idiotas.
Acredito que muitas críticas devem ser feitas aos modelos de comunicação emergentes. Falta checagem, há espaço crescente pra teorias conspiratórias, abusa-se da pós-verdade, e sequer chegamos no ponto alto de utilização da Inteligência Artificial. Mas as críticas devem servir pra aperfeiçoar, e não para invalidar novas iniciativas.
O que me levou a este reflexão foi a série de vídeos feita pelo influenciador digital amapaense que atende no instagram como @_soedi e no twitter como @brisadeio. Não precisa scrollar muito a timeline das redes dele pra perceber que ele declarou guerra contra o atual governador, Clécio Luís,
Nos últimos meses já houve críticas quanto às informações institucionais no site do GEA, críticas à política de segurança pública, e à morosidade na entrega de grandes obras do governo. Isso só até a data em que escrevo (9/11/2024), e tenho certeza que a série de vídeos não há de parar por aí. Motivos pra criticar não faltam. O dia que chegar nos problemas da política de saúde, há potencial gigantesco pra causar estragos na equipe de governo.
Confesso, parte dos apontamentos feitos pelo influenciador me parecem insuficientes pra confrontar os fatos. Exemplifico: no vídeo sobre os problemas de segurança pública, ele fala sobre o não cumprimento da promessa do governador de zerar a lista de aprovados no concurso da Polícia Militar. Nem de longe esta medida melhorará nossos índices de violência, e ouso dizer que tende a piorá-los. No vídeo sobre as obras na rodovia JK (outra que não chamarei pelo novo nome), o discurso do vídeo soa contraditório, porque há uma crítica pelo fato de a rodovia não ter sido restaurada, mas a obra ainda está em andamento.
Mas no vídeo a respeito da obra no complexo do aturiá, acredito que ele acertou praticamente em cheio. Endereçou problemas das famílias da região (relacionados à indenização pelo que imagino ser a expropriação dos terrenos), mostrou a morosidade na obra, falou do conflito entre governo e prefeitura pela área.
Só que o mais interessante pra mim é a seção de comentários. A menos que o influenciador esteja apagando eventuais comentários dissonantes à crítica feita nos vídeos (e eu realmente não sei se isso tem sido feito), só se vê gente lhe parabenizando por apontar as falhas da gestão Clécio. E lá também se veem críticas à mídia tradicional do estado, e por uma questão conjuntural, críticas ao portal de notícias Seles Nafes.
Seles é um jornalista que construiu uma carreira sólida em veículos de mídia tradicionais do estado, chegando a atuar como âncora de importantes telejornais, no tempo em que a TV era o principal meio de comunicação, superando o rádio e antes da onda revolucionária das redes sociais. O jornalista acabou criando seu próprio portal de notícias (que leva seu nome), e também se consolidou como um dos principais veículos de mídia em ambiente virtual no Amapá.
Mas está muito clara a linha editorial do portal Seles Nafes em favor do grupo hoje composto por Clecio, Davi Alcolumbre e Waldez Góes (a neo-harmonia). Por essa razão, reportagens contundentes contra o grupo do atual prefeito (Antônio Furlan) são comuns nas manchetes do portal. E vou para pelo Seles pra não falar de outros portais menores (mas em trajetória ascendente) que também são claramente da turminha do Jabá.
O fato é: cada reportagem do Seles criticando o prefeito gera uma enxurrada de comentários críticos à idoneidade do jornalista. E não para por aí. Há veículos de mídia nativos das redes sociais que também já estão jogando o mesmo jogo. Darky News, Tucujei, Tucuju News, SDB News etc. Pode parecer bobagem, mas tem gente que se informa pelas publicações destes canais.
Creio que, dada a aparente desnecessidade de seguir preceitos éticos do jornalismo e de realizar determinados filtros que permitam chegar a notícia aos leitores, estes veículos nativos das redes sociais sentem-se à vontade pra atuar como verdadeiros "ZapNews".
Vídeos de pessoas acidentadas, carros capotados, gente baleada, esfaqueada, vídeos de agressões. Tudo o que circula nos grupos de aplicativos de mensagens vira pauta nestes novos veículos. Hoje as pessoas se informam pelo Tucuju News (onde leem de fofoca conjugal a catástrofes ambientais) e formam opinião em postagens de influenciadores digitais. Isto é problemático? Penso que para nós, que crescemos lendo jornais da mídia tradicional, parece ser problemático sim. Mas o que fazer então? Ignorar que as pessoas dão atenção a estes novos atores da cena de comunicação? Adotar uma postura à lá Simão Bacamarte e dizer que todo mundo está doido, menos nós? E não seria isto uma postura elitista?
Quando a guerra entre Rússia e Ucrânia foi deflagrada, rapidamente viralizaram na internet tweets informativos da conta "Choquei". Desde lá, várias páginas normalmente voltadas à cultura pop internacional passaram a mesclar posts conflagrando os stans das divas do pop e notícias de política e economia com uma linguagem menos formulaica.
E nesse cenário começam a pipocar no Amapá atores como SDB News, Tucujei, etc. As pessoas parecem se sentir mais à vontade lendo estas páginas do que veículos tradicionais. E quando um portal de notícias mais convencional muito se abaixa, o rabo lhe aparece, daí vêm as críticas e até mesmo a legitimidade da notícia trazida por sujeitos como o Seles Nafes.
Claro que aí há um problema. Não se pode achar que todo veículo de mídia com perfil corporativo seja inteiramente enviesado, e tampouco há que se deixar levar pela inocência de que os novos atores desta cena sejam totalmente neutros. Então, seja lendo uma notícia do Estadão, seja vendo um vídeo do @_soedi, manter-se alerta e exercitar um pouco de criticidade é sempre importante.
Seguirei acompanhando com olhos atentos este processo. E mais que isso: continuarei atento à treta fenomenal do @brisadeio com o "Paulão" no twitter. Um confronto delicioso de assistir, entre um jornalista que representa de corpo, alma e coração o jeito tradicional de comunicar no Amapá, e um jovem influenciador que vem também caminhando pelas veredas da comunicação política.
Voltamos a qualquer momento com mais informações.
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